Direitos das mulheres: Um quadro legal “quase perfeito”, num contexto social ainda a desbravar

PorSara Almeida,31 mar 2024 7:50

O Dia da Mulher Cabo-verdiana foi pretexto, paradoxal, para um assunto que não pode reger-se por efemérides, antes deve estar presente em todos os momentos e vertentes do dia-a-dia: a legislação de rosto feminino. Em conversa com a advogada Leida Santos, passamos em revista as principais leis que asseguram o direito das mulheres, algumas das quais, inclusive, por meio de uma ainda necessária discriminação positiva. Com um quadro legal que é “quase perfeito”, na garantia desses direitos é preciso ir além das palavras da lei e concretizar as medidas que os efectivam, num contexto social, às vezes, ainda adverso. “Mas estamos no bom caminho…”, considera a jurista. E um dia esses direitos já não serão imposição da lei, mas algo natural.

Antes de falarmos da Lei e Direitos das mulheres, uma apresentação da entrevistada e seu percurso de vida.

Advogada, ex-bastonária, docente universitária e presidente da Mesa da Assembleia Municipal de Ribeira Grande, é na mulher de Santo Antão que Leida Santos tem a sua matriz e norte, em especial a sua mãe, sua principal referência feminina. Nascida em Coculi, concelho de Ribeira Grande, e filha mais nova de uma enorme família – a mãe teve 11 filhos e o pai 21, “quase todos criados juntos” – é precisamente a matriarca quem primeiro lhe vem à fala, quando desfia as suas memórias.

A mãe e sua serenidade inabalável. “Eu nunca vi a minha mãe levantar a voz ou perder o controle, mesmo no meio de tantas crianças. Ela sempre manteve uma postura moderada, mas acima de tudo, com muito, muito amor”, conta.

Assim, Leida e os seus irmãos cresceram num ambiente de palavras de carinho e amizade, uma criação que deu bons frutos. “Ela educou homens e mulheres, que hoje em dia têm o comando da sua vida e, portanto, são homens e mulheres realizados”.

É na mãe também que Leida personifica essa “mulher de Santo Antão”. Embora fosse o pai, proprietário agrícola, quem “saía para trabalhar”, era a mãe que, tal como várias outras mulheres da ilha das montanhas, comandava as finanças e as grandes decisões da família. “Toda a gestão familiar era conjunta e sob o comando da minha mãe”, refere.

E mãe e pai partilhavam uma visão forte, também comum na ilha, sobre o seu legado. “O meu pai dizia muitas vezes que a maior herança que nos poderia deixar era a educação”. E a par com o incentivo ao saber e ao conhecimento, o seu investimento na educação foi grande. ”Tanto é que a maior parte de nós saiu para continuar os estudos e fez os estudos superiores fora do país”.

Filhos e filhas, sem distinção de género. “Sempre houve igualdade” e um ambiente de muito diálogo. “A nossa casa era muito democrática. Todos tinham o direito à voz, à palavra e todos tinham direito, e o meu pai cultivava muito isso em nós, que era a nossa liberdade. Dava-nos espaço para sermos aquilo que queríamos ser”.

Desse ninho saíram “arquitectos, farmacêuticos, engenheiros, contabilistas, agentes da polícia…”.

Estudos

A par com toda a influência da casa familiar, há uma outra que foi importante na vida de Leida. Na altura, em Santo Antão não havia liceus. Terminado o ensino básico, os seus irmãos iam saindo para a vizinha São Vicente, onde prosseguiam os estudos.

Leida, porém, fez toda a escolarização nessa ilha. Com seis anos, a codé da família atravessou o canal e foi para casa da sua irmã mais velha, professora, e que se tornou também “uma referência importantíssima” com “uma influência enorme” na sua educação.

“Em casa da minha irmã, a disciplina e o estudo eram palavras de ordem. Tínhamos horários rígidos”. Era também uma casa cheia de gente, segundo lar de muitos dos irmãos Santos.

Aí ficou Leida até concluir os estudos do liceu, sempre mantendo, porém, uma forte ligação a Santo Antão, para onde retornava em todos os períodos de férias.

Advocacia

Terminado o Ensino Secundário, Leida Santos recebeu uma bolsa de estudos e seguiu para Portugal, onde se licenciou em Direito, na Universidade Católica do Porto.

Não havia muito a pensar na escolha do curso, nem tampouco do ramo que escolheria para a vida. Há muito que o seu desejo era ser advogada. “Nunca cogitei a hipótese de ser magistrada, ou magistrada do Ministério Público ou qualquer outra profissão jurídica. Sempre quis ser advogada”, conta.

Toda a sua vivência e personalidade a moldaram para tal. “Fruto deste contexto em que cresci, nunca consegui ficar calada. Aliás, é um problema que tenho até hoje. Sempre procurei ser a voz dos que não podiam falar e sempre me indignei perante aquilo que eu achava que era injusto. Então, desde muito pequena, as pessoas diziam-me: ‘tu devias ser advogada’”.

Leida Santos foi crescendo, amadurecendo, tomando consciência do que queria. E era isso mesmo.

Terminado o curso, em 2000, inscreveu-se no estágio na Ordem dos Advogados de Portugal e começou essa etapa de dois anos, sob a tutela de um patrono que muito a incentivou e a fez desenvolver como advogada: Ricardo Bexiga, conhecido advogado português e antigo deputado.

Em 2002, Leida regressou a Cabo Verde e entrou para o escritório de advogados onde até hoje exerce e onde tem como colega, entre outros, Lígia Dias Fonseca, advogada que foi a primeira bastonária da Ordem dos Advogados de Cabo Verde, em 2001-2004 (e Primeira Dama de Cabo Verde entre 2011 e 2021).

Mas voltando ao momento do regresso à Praia. “Fui muito bem acolhida. São pessoas com as quais aprendi muito mais do que direito. Passei a viver os valores da liberdade e da democracia, que neste escritório cultivamos”.

O escritório de advocacia tornou-se, assim, mais um contexto propício àquilo que seria a sua evolução posterior.

Dois anos depois da chegada, em 2004, foi eleita membro do Conselho Superior da Ordem dos Advogados, órgão que integrou até 2012, quando foi eleita bastonária. Aliás, é de referir que a Ordem dos Advogados, que vai no seu sétimo bastonário, é uma das entidades onde se tem assistido, ao longo dos anos, a uma alternância equilibrada de género na sua liderança. O seu primeiro bastonário foi uma mulher, como referido (Lígia Fonseca), e desde então houve mais duas advogadas (Leida Santos e Sofia de Oliveira Lima) a liderar a associação profissional. Neste momento, há também mais mulheres inscritas na Ordem do que homens.

Muitas foram alunas de Leida Santos, que é docente a tempo inteiro no Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais, onde lecciona há mais de uma década.

Política

Mas há uma outra área que, há muito atrai Leida Santos: a política.

“O bichinho da política começa lá atrás”, brinca. E mais uma vez voltamos à família: os seus irmãos que, como reconhece, tiveram uma grande influência na sua formação pessoal e na construção dos seus valores e princípios. E com vários dos irmãos na linha da frente da política nacional, esta sempre fez parte da sua vida.

À cabeça deste interesse dos irmãos Santos pela política está, mais uma vez, o pai, “um cidadão muito atento à comunidade, atento aos problemas das pessoas” que, nascido, crescido e de vida feita em Ribeira Grande, sempre participou na resolução dos problemas do concelho.

A Política era “um tema que debatíamos à mesa”, numa altura em que não havia luz eléctrica, onde os longos serões eram passados a conversar.

“A electrificação em Santo Antão é uma realidade relativamente recente. Passamos a ter electricidade de 24 horas, eu já estava a estudar o 12º ano”, lembra, e, portanto, “era um contexto que fomentava o debate”, onde, como referido, todos tinham direito à palavra.

Assim, a política acompanhou toda a sua vida, desde o seu lar de infância e juventude até ao lar da família que constituiu (o esposo, Fernando Elísio Freire, é o actual Ministro da Família, Inclusão e Desenvolvimento Social).

Não obstante o (quase) genético “bichinho da política” e do contributo constante de Leida para o Estado de Direito Democrático, pelo papel exercido como advogada e bastonária, a sua entrada na política activa é relativamente recente.

Dá-se em 2020, nas Autárquicas, as primeiras eleições realizadas após a aprovação da Lei da Paridade (2019) – que exige uma representação mínima de 40% de cada um dos sexos nas listas de candidatura aos órgãos colegiais do poder político.

“Nos círculos que frequento e debates em que participava, comecei a sentir alguma inquietação dos partidos sobre como preencher a quota”, lembra. Questionava-se, nomeadamente, se haveria suficientes mulheres para tal. Leida intrigou-se. “Conhecendo o valor da mulher cabo-verdiana, mulheres que já se destacaram em várias áreas, que quando se apresentam a cargos electivos saem vencedoras, comecei a ficar muito incomodada com estes questionamentos. Mulheres para preencher as quotas? Se calhar, até há demais”.

Mostrou, então, a sua disponibilidade em entrar nas listas e candidatou-se como cabeça de lista para a Assembleia Municipal do seu município natal: Ribeira Grande de Santo Antão.

“Sempre tive um particular apreço pelo poder autárquico, pela proximidade com as pessoas. É nas comunidades que as coisas acontecem. Ou seja, onde as políticas nacionais ganham vida. E sempre disse que se um dia fosse para a política, teria de começar por Ribeira Grande. Esta oportunidade permitiu-me isso”, diz.

A experiência tem sido enriquecedora e, como presidente da AM, nunca sentiu constrangimentos por ser mulher. Aliás, a Assembleia está equilibrada em termos de género e as deputadas são “muito interventivas, muito competentes. Estão lá de igual para igual.”

Mas o seu percurso não foi isento de críticas. Quando se candidatou logo surgiram comentários depreciativos. Residente em Santiago, com um filho e uma filha, gémeos, na altura com 12 anos, e um filho de 17 anos, questionavam como ficariam os menores. “Isto também me incomodou bastante”, confessa.

“Optar por entrar na política, por aceitar um cargo, não exclui a família. Nem a família exclui que o faça. Eu tenho um compromisso com os meus filhos. A minha família é um projecto pessoal prioritário, mas também tenho um compromisso com o meu país e um compromisso especial com a minha ilha, com o meu concelho. Portanto, são realidades que devem necessariamente conjugar-se”, analisa.

Os próprios filhos, que aliás viram desde sempre o pai na política activa, foram os seus maiores apoiantes. Leida contou também com o apoio do marido e da sua numerosa família. “Tenho suporte, realmente. A luta de um é a de todos. E eu realmente tive todo esse apoio”.

E se Leida não tivesse tido o apoio que teve? “Resolveria, porque as mulheres arranjam sempre formas de resolver tudo”, responde.

Fala-se muito em igualdade e equidade de género, mas também que somos todos iguais perante a lei. Quando é que se justifica, então, em termos legislativos, haver discriminação?

A igualdade está consagrada na nossa Constituição e nos nossos principais instrumentos legislativos, mas deve-se discriminar positivamente quando nos deparamos com obstáculos a essa igualdade. Por exemplo, no nosso país, a participação feminina na política, embora tenha sido crescente ao longo da nossa história de país independente, ainda não atingiu o nível ideal. Daí, a Lei da Paridade. Contudo, também é preciso muito cuidado na adopção de tais mudanças, procurar garantir sempre o equilíbrio, para evitar que tenham um efeito adverso. Já vi mulheres não quererem participar numa lista porque querem chegar lá por mérito próprio e não para preencher uma quota. E o que digo, quando uma mulher integra uma lista para preencher uma quota, é que a Lei da Paridade permite-lhe chegar onde ela já devia ter chegado por mérito próprio se não fossem as limitações e os preconceitos que nós ainda temos. E não é só na política. Em Cabo Verde, a taxa de desemprego é mais alta entre as mulheres, a maior parte das vítimas de violência baseada no género são as mulheres, há discriminação salarial – homens têm salários tendencialmente mais altos. São realidades, e têm de se combater preconceitos e ideias enraizadas, que têm a ver com a nossa história.

A própria Constituição manda “velar pela eliminação das condições que importam a discriminação da mulher e assegurar a protecção dos seus direitos” (Artigo 88°, n.º 2). Mas, e as mulheres, estão cientes dos seus direitos? Reivindicam-nos?

Primeiramente, é importante destacar que tem havido um esforço considerável por parte do país na divulgação dos direitos das mulheres. Desde logo, o facto de termos uma instituição, que começou por ser a Instituição da Condição Feminina, e hoje é o ICIEG e vários programas designadamente executados pelas ONGs, mas reconheço que ainda é preciso fazer mais. Na Associação Cabo-verdiana de Mulheres Juristas, da qual sou membro, apostamos muito na divulgação dos direitos das mulheres. Há, por exemplo, casos em que uma mãe pode não reivindicar uma pensão de alimentos porque não sabe que o filho tem direito a essa pensão. Ou, casais que se separam e a mulher que não trabalhou, até por exigência do marido, não sabe que tem direito a uma pensão de alimentos. Ou ainda mulheres que desempenham as mesmas funções do que os homens e têm salários diferentes. Se nos grandes centros urbanos, se calhar, as mulheres estão mais cientes dos seus direitos, nas localidades do interior não é bem assim. A Associação teve projectos em que percorreu as diferentes ilhas e localidades e sentimos que o nível de informação varia de contexto para contexto. Portanto, tem havido um esforço das autoridades públicas e das organizações não governamentais, mas é necessário continuar a apostar na divulgação [dos direitos]. Ainda há um trabalho a fazer, e estamos a fazê-lo.

Como avalia, no geral, as leis no que toca à mulher?

No que toca à mulher, temos um quadro que eu diria quase perfeito. A começar pela nossa Constituição. Nós também ratificamos as principais convenções internacionais em matéria de direitos das mulheres. A nossa legislação laboral já atende a essas diferenças. Ou seja, o quadro jurídico é um quadro quase perfeito, agora é preciso concretizar este quadro. E isso faz-se com medidas concretas.

Falando da Lei vs Realidade, referiu que a desigualdade salarial persiste.

Persiste e é um problema grave. O trabalho igual, nas mesmas condições, tem de ser remunerado da mesma forma. O Código Laboral, a própria Constituição, asseguram-no. Mas, numa democracia participativa como a nossa, as mulheres também têm de assumir essa reivindicação. Ou seja, por um lado, as mulheres devem denunciar e temos de criar condições para que as mulheres não tenham receio de denunciar. Por outro lado, as autoridades na área de trabalho, também devem acompanhar e intervir. É uma violação da lei que deve ser corrigida. É um problema que existe e sabemos que existe.

Os sindicatos estão sensibilizados para essa questão?

Não tenho ouvido muitas intervenções nesse nível…

Uma lei em que Cabo Verde foi bastante “avançado”, mesmo em relação a países ditos “desenvolvidos”, foi o direito à interrupção voluntária da gravidez (IVG). No entanto, esta não é bem aceite por toda a sociedade. É uma lei efectivada? Há dados que mostram que a maior parte dos abortos continua a ser feito fora das unidades de saúde…

Temos essa lei, que permite a IVG até às 12 semanas, já desde 1986. O texto da lei refere que a IVG pode ser feita nas instituições de saúde centrais e autorizadas. Não nos parece que a IVG seja feita fora das unidades de saúde, não temos esse dado. Vejamos, que um aspecto positivo é que, contrariamente a outros países, em que há estabelecimentos clandestinos que fazem IVG, em Cabo Verde nós não temos conhecimento de casos ou denúncias. O que temos de distinguir é estabelecimentos públicos e estabelecimentos privados. Quando a lei foi feita, em 86, praticamente não tínhamos estabelecimentos privados de saúde. Hoje já temos estabelecimentos que estão autorizados a praticar actos médicos, que têm todas as condições para garantir a integridade física, a segurança da intervenção e a saúde da mulher. A nossa percepção é que a maior parte das interrupções são feitas nos estabelecimentos privados, mas que estão autorizados a praticar actos médicos. Aqui entra um aspecto fundamental que é a questão do sigilo. Sabemos que a IVG suscita muitas questões éticas, morais, até mesmo um estigma, pois somos um país maioritariamente cristão. Então, as pessoas realmente preferem recorrer aos privados para salvaguardarem a sua privacidade.

Mas o público não tem o dever de salvaguardar essa privacidade?

São estruturas maiores, diferentes, há intervenção de várias pessoas. Mas é um serviço garantido com segurança. Porém, se as pessoas se sentem mais seguras no privado, isso já é da esfera de liberdade individual de cada um.

Outra lei incontornável neste escopo é a lei da Violência Baseada no Género (VBG). Já passaram mais de 10 anos desde a entrada em vigor, é uma lei complexa, já está bem assimilada?

Muito complexa. A lei da VBG é muito mais do que a parte penal e processual penal. Prevê toda uma sensibilização e acções para a prevenção da VBG, a possibilidade dos homens de terem psicólogos, tem também uma parte referente à protecção da vítima, designadamente as casas de abrigo, e tem, depois, a parte penal, que é muito importante. Há, designadamente, uma grande novidade nesta lei, que foi tornar o crime de VBG em um crime público, ou seja, que qualquer pessoa pode denunciar. Na parte processual penal, a especificidade é que são processos urgentes, que devem ter tratamento prioritário nos tribunais. Esta lei tem um aspecto positivo: com a aprovação da lei, passamos a falar de VBG. A VBG tornou-se um tema, tanto é que nos primeiros anos de entrada em vigor, aumentaram muito os casos de denúncia. Ou seja, as pessoas sentiram-se mais seguras e motivadas a fazerem as denúncias - não temos dados que confirmem se estes números reflectem ou não os casos reais de VBG. O que sabemos é que antes, muitas pessoas não denunciavam e muitas não o faziam por vergonha. Hoje já há uma rede, várias associações que prestam apoio, e muitas mulheres já sabem aonde recorrer.

Mas do ponto de vista penal?

Do ponto de vista penal, é uma lei realmente muito complexa. Passo longas horas com os meus alunos a discutir essa lei – a parte criminal e processual penal, inclusive, já foram incluídas no código penal e no código de processo penal, no que foi praticamente a transcrição de passagem. A VBG é a violência baseada numa representação de género. Ou seja, existe uma relação da ascendência do poder do agressor sobre a vítima. Então, há muitos casos que dão entrada nos tribunais como VBG e que não são VBG, são agressão física. E há muitas situações, e como advogada tenho essa experiência, de casos em que claramente a motivação da violência são representações de género e que não dão entrada como VBG. Todos nós estamos, cada vez mais, a compreender esta lei, sobretudo na parte penal e processual penal. Portanto, a lei já teve todo um período de evolução e sinto os juízes mais sensibilizados, os magistrados do Ministério Público também mais sensibilizados e os próprios advogados já com mais perícia na condução desses processos. O crime de VBG é um crime que muitas vezes se passa entre quatro paredes e a dificuldade da prova, por exemplo, é enorme. Por vezes, é a palavra de um contra a palavra do outro. Então, dos magistrados, nós exigimos essa sensibilidade. Há situações, nomeadamente, em que se justifica actuação imediata das autoridades, o afastamento do agressor do lar, que está previsto. Mas estamos a progredir, tanto é que agora na Praia, já temos um magistrado do Ministério Público afecto exclusivamente aos crimes de VBG e ao abuso sexual de menores.

E quanto ao apoio à vítima?

Temos, neste momento várias associações que prestam apoio jurídico e também psicológico às vítimas de VBG. Porém, é essencial trabalhar junto da sociedade. Temos de criar condições para que as mulheres vítimas de VBG não sintam medo. E é preciso não esquecer, e discuto muito isso com os meus alunos, que temos várias realidades. Por exemplo, consideremos uma família em que o pai é o único que trabalha e a mãe cuida dos dez filhos. Ela pensa: se o meu agressor for afastado do lar, como vou sustentar a minha família? Ou seja, temos de trabalhar também o empoderamento económico das mulheres para reduzir as dependências financeiras. Além disso, também temos um peso social grande. São realidades complexas, mas, apesar de eventuais oscilações no número de denúncias, a temática da VBG tem tido uma evolução e uma crescente compreensão da VBG e da própria lei.

Como disse, Cabo Verde tem várias realidades. Tem havido o cuidado de olha essas diferentes realidades quando se legisla em Cabo Verde?

Nesta lei da VBG em particular, foram atendidas. Lembro-me aquando da discussão da lei e da aprovação da lei que se discutiu muito a questão da própria constitucionalidade da natureza do crime, que, como disse, é um crime público, que qualquer um pode denunciar. Havia toda uma corrente que defendia que não o deveria ser, que as pessoas denunciam se quiserem. Até houve quem dissesse que esta lei tinha vindo destruir a família cabo-verdiana! Houve foi uma assunção de um problema. Esta lei é um passo importantíssimo, assumiu que a VBG é um problema do país, um problema da sociedade e que todos nós temos alguma responsabilidade nisto. Os poderes públicos, os cidadãos em geral, cada um à sua maneira, devem realmente, criar as circunstâncias para que as mulheres não tenham limitações em fazer a denúncia quando são vítimas.

Outro grande marco é a Lei da Paridade, de que há pouco falou.

A Lei da Paridade também gerou muita discussão. Por um lado, pelas hostes machistas do mundo da política. Por outro lado, pelas próprias mulheres que, como já referi, estavam relutantes em entrar nas listas, porque não querem ser vistas como integrantes, apenas para preencher uma quota. Pessoalmente, num primeiro momento, eu também tinha alguma reticência, mas depois o meu percurso pessoal mostrou-me que não deveria ter. Não podemos deixar de ter presente que a lei de paridade é um instrumento, não é uma meta. Ou seja, é um meio para acelerarmos um processo que, não fosse esta lei, demoraria, não mais tempo, mas muito mais tempo. Então, na minha perspectiva, esta é uma falsa questão. Temos mulheres muito competentes, que já se destacaram em diferentes áreas de intervenção, e, portanto, temos mulheres com muito para dar a este país e para o desenvolvimento do país. Sabemos que a diversidade da composição dos órgãos políticos, designadamente dos órgãos colegiais, é fundamental porque enriquece os debates políticos. São visões diferentes, sensibilidades diferentes – e as mulheres têm sensibilidade diferente para determinadas questões. Enfim, o caminho rumo às lideranças femininas, à participação política das mulheres, está a ser feito, estamos no meio do percurso e temos de continuar a trabalhar cada vez mais para a aplicação desta lei. Acho que o grande desafio é que a participação das mulheres na política, em igualdade de circunstâncias com os homens, seja algo natural, não uma imposição da lei.

Saindo da política. Tivemos recentemente um aumento da licença de maternidade. Como vê este passo?

A avaliação desta alteração legal só pode ser positiva. É um grande ganho para a família. As recomendações da OIT (Organização Internacional do Trabalho) apontam para uma licença mínima de cerca de 3 meses [98 dias/14 semanas]. A licença de maternidade em Cabo Verde era de 60 dias e passa agora a ser de 90. Já é um passo. Já está dentro da linha das recomendações da OIT. E passamos a ter a licença de paternidade. São medidas que vamos ter de acompanhar a sua execução e avaliar, por exemplo, como é que os pais estão a usar a licença de paternidade. Mas devemos caminhar para uma outra meta a curto, médio prazo, que é termos uma verdadeira licença de parentalidade, em que há um período mínimo obrigatório destinado à mãe, para recuperação do parto, mas os restantes meses podem ser gozados ou pelo pai ou pela mãe, de acordo com as conveniências de cada núcleo familiar.

E estruturas de apoio às mães trabalhadoras (salas de amamentação, creches, etc.)? Como vê a actual situação do país a esse nível?

Alguns privados já têm salas de amamentação e tem sido divulgada a intenção de passarmos a ter também nas instituições públicas. Também está em discussão a universalização do acesso às creches. Dadas as circunstâncias do país, ainda não podemos ter isenção [de pagamento] para todos, mas ouvi recentemente declarações que indicam que o objectivo é a subsidiação das famílias que não têm meios, de modo a garantir essa universalização. Temos o plano de cuidados, que contempla vários programas e está neste momento em reavaliação. Está a ser trabalhado o estatuto do cuidador informal… Temos acompanhado com particular interesse esses anúncios, porque estas medidas é que são a verdadeira garantia da efectivação dos direitos que já estão formalmente consagrados. Estamos no bom caminho, agora é preciso é concretizar as medidas anunciadas.

Fala-se imenso das mulheres, às vezes até com alguma vitimização. Os discursos, apesar de importantes, não tenderão a ser cansativos e criar uma resistência? Deveríamos falar antes de Direitos Humanos?

O que temos de dizer é que as mulheres, antes de mais, são pessoas humanas e que o valor fundamental do nosso ordenamento jurídico é a dignidade da pessoa humana. A Constituição impõe um conjunto de tarefas ao Estado, às instituições, para realizar essa dignidade e essa dignidade deve ser sempre respeitada. Agora, a realidade mostra-nos que há determinados grupos que merecem uma atenção especial para que os seus direitos humanos, direitos de que todos gozam, possam ser realizados. Tenho alguma resistência em falar de direitos das mulheres porque eu acho que, inquestionavelmente, são direitos humanos. No entanto, por força da realidade as mulheres, ao lado das crianças, das pessoas com deficiência, dos idosos, precisam uma atenção maior – e as próprias organizações internacionais alertam para a necessidade de se dar especial atenção. Mas, no fundo estamos é a garantir os direitos humanos que todo o nosso ordenamento jurídico e a dignidade da pessoa humana impõem. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1165 de 27 de Março de 2024.

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Autoria:Sara Almeida,31 mar 2024 7:50

Editado porSara Almeida  em  2 mai 2024 10:20

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